
"Mãe é tudo igual."
"Só quem é mãe pode sentir."
"Ser mãe é a melhor coisa na vida."
Será?
Em um trabalho de comunicação interna de uma empresa de construção civil e arquitetura, são realizadas entrevistas com três funcionárias para uma campanha desenvolvivida pelo setor de marketing para o dia das mães. A primeira está acima de 50 anos e tem nível superior, as outras duas estão na faixa de 30 a 35 anos e possuem nível médio de escolaridade. As respostas no entanto parecem uniformes, apesar de as mulheres aparentarem grande sinceridade ao expor suas dúvidas e medos.
Algumas confessaram a culpa de sair de casa e deixar seus filhos para trabalhar.
Sentem-se mal e embora repitam outra ideia muito popular: "não me arrependo de nada", não demonstram convicção. Já que sabem não satisfazer plenamente o "papel de mãe" previsto em nossa cartilha imaginária.
Em resumo, as declarações refletem o que chamamos de senso comum, e como você deve ter precebido não são privilégios de uma amostragem pequena e isolada.

É no entanto, ao olhar ingênuo da jornalista que apurou os dados e redigiu o texto para o informativo interno da empresa, que me indigno. Pois, a esta, além de mulher, recai a responsabilidade de estar no grupo de formadores de opinião. Porém, quantas pessoas tem acesso a um questionamento consistente ao mito do amor eterno? Infelizmente mesmo entre "intelectuais", vemos a crença reproduzida.
Mas não podemons nos dar ao luxo de apenas uma versão, de manter um olhar que não se desafia a enxergar nada além do senso comum e que compactuará em consequência com os mecanismos de poder, reforçando ainda mais um mito que mal-trata a mulher que precisa assumir vários papéis sem deixar de ser mulher para o marido, para as amigas e inimigas, e profissional em seu trabalho, sempre com perfeição, principalmente no papel de mãe.

Origens
O Dia das Mães é notoriamente a época que gera mais lucro no comércio brasileiro, antecedida somente pelas festividades do Natal. É também talvez quando o discurso "ser mãe é natural" é revigorado, reforçado, algumas vezes atualizado. A celebração remonta a Antiga Grécia, em honra a deusa Réia, mas a data foi proposta por Anna Jarvis ao governador William E. Glasscock de Virgínia Ocidental, Estados Unidos, comemorada pela primeira vez em 1910.
Movida pela dor da perda de sua mãe, Jarvis que havia lutado por três anos para a instituição de um dia em homenagem as mães, decepcionou-se e chegou a declarar em 1923 a um repórter: “não criei o Dia das Mães para ter lucro”. Logo depois entrou com um processo para cancelar o Dia das Mães, o que sabemos não teve êxito. A ideia já havia se tornado lucrativa para algumas pessoas.
Desde 1918, o Dia das Mães é comemorado no Brasil igualmente no segundo domingo de maio. Passando em 1947, a fazer parte também do calendário oficial da Igreja Católica no país, por determinação de Dom Jaime de Barros Câmara, Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro.

Quanto ao mito do amor materno, como o conhecemos, afirmam ter sido uma invenção só surgida no século XIX. Em Um amor conquistado - o mito do amor materno de Elizabeth Badinter, publicado em 1980, a história da maternidade é analisada com profundidade, trazendo fatos que sustentam a afirmação observada no título do livro: o amor materno é um mito, pois varia de acordo com o tempo e o espaço, tratando-se de algo cultural e não natural.
Alguns talvez lamentem e praguejem diante de algo contrário ao que estamos acostumados a ver e a ler nos noticiários, novelas, filmes, romances e anúncios de publicidade. É verdade que a mídia quase inteira divulga, reforça e mostra "provas" de que há um sentido que nasce com a mulher e que a fará ser a melhor mãe do mundo. No sábado, 08/05/10, assisti pela primeira vez na tv, a menção ao trabalho de Badinter. Obviamente isto pode ter sido dito antes, mas repito, quantas pessoas têm acesso a essa informação? Se nem jornalistas..?
Experimente buscar, por exemplo por instinto materno e veja o que aparece. Note que o programa Saia Justa faz parte do acervo da Globo Vídeos mas ele nem constará na lista, apesar da palavra-chave estar ligada ao resumo apresentado no site sobre o episódio citado. Se buscar mito do amor materno, veja o que aparece.
Já ouvi muitos até questionarem de forma lógica por que algumas mulheres não se encaixam nos padrões de comportamento esperados em nossa sociedade. Os questionadores, no entanto, não podem sair do lugar comum das digressões ou conversas de botequins. Experimente você sair por aí falando sobre "mito do amor materno" e espere as pedras ou rápidas mudanças de assunto.
Mas revisemos agora as mensagens encontradas nas falas das mães entrevistadas.
Mãe é tudo igual
Não importa o quão seja única e intrasferível a personalidade, a mulher enquanto mãe tem um padrão a seguir, uma expectativa que lhe foi introjetada desde os primeiros contatos com sua cultura e que será cobrada durante toda a vida e por todos os lados (em maior ou menor grau). No texto original da jornalista chegamos a ler: "As dúvidas e os medos são os mesmos em relação aos filhos". É claro que existem semelhanças entre as pessoas, mas por que as dúvidas seriam iguais? E aquilo que me dá medo é bem possível que você não lhe cause nenhum espanto. Algumas mães, por exemplo, morrem de medo que seus filhos deixem se seguir a sua religião, podendo até rejeitá-los caso isso ocorra
Só quem é mãe pode sentir
Essa seria uma frase repetida pelas três entrevistadas. Embutido nesta "pérola", encontramos outras como "mãe tem sexto sentido de mãe", e se substituirmos mãe por mulher podemos concluir que só quem é mulher pode ser mãe. Busque no Google por "sexto sentido de mãe" e encontrará em 144.000 resultados em 0,23 segundos de material que reforça a veracidade da afirmação. Infelizmente até um texto atribuído a Fernando Sabino aparece na lista, carregando, devido a autoria, um valor superior como informação-verdade já que são as falas de um representante da classe "culta"
"As mulheres são mães! E preparam, literalmente, gente dentro de si. Será que Deus confiaria tamanha responsabilidade a um reles mortal?" - Fernando Sabino
Polêmicas à parte, levando em consideração a afirmativa de que só a mulher tem o privilégio de ser mãe e considerando as entrelinhas das palavras de jornalista e escrito, em que ser mãe é igual a gerar e parir uma criança e todas as outras coisas depois, chegamos num impasse que serve inclusive de argumento para os que se opõem a criação de crianças por casais homossexuais; mesmo os compostos por duas mulheres, afinal "mãe só tem uma" e a criança, tadinha ficará perdida sem saber quem é a "mãe de verdade".

Anônimo. Mucama com criança ao colo. Óleo sobre tela. Figuração rara de uma ama de leite, atribuída por alguns autores a Debret como representação de Dom Pedro de Alcântara com um ano e meio de idade no colo de sua ama.
“Mãe tem uma só”, conhecida frase que rodou nosso continente em boca dos higienistas na segunda metade do séc. XIX, segundo Rita Laura Segato, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), é relacionada as intenções de preservação dos brancos da contaminação e da corrupção moral que a presença de negros na intimidade da casa senhorial estaria a introduzir. Daí que as amas de leite passaram a ser condenadas até que o ato de amamentar foi transferido ao seio materno branco e limpo, o seio recomendado, agora, da mãe - senhora.
Ser mãe é a melhor coisa na vida
Notou que a afirmação acima é completável na cabeça, tornando-se facilmente "ser mãe é a melhor coisa na vida de uma mulher"?
Mas qual é a maior realização na vida de uma mulher? Siceramente, não sei. É provável que dependa da cultura, dependa de como a pessoa se insere ou se opõe a ela... Mas o que dizem é que ser mãe é o que realmente traz sentido a vida da mulher, de toda mulher. E se não traz, voltamos a sentença: "é uma desnaturada".
O mérito de ser mãe
Segundo as psicólogas Tania Novinsky Haberkorn e Sheila Skitnevsky Finger, que criaram o Instituto Mãe Pessoa para apoiar as mulheres no cumprimento e satisfação de seus papéis (em síntese: profissional, mãe e mulher), “ é necessário abandonar mitos e crenças, delegar funções, listar prioridades e viver com menos culpas”, e afirmam: “não existe manual para ser boa mãe”.
É de se esperar, no entanto, afinal viva as diferenças!, que algumas pessoas se encaixem muito bem no papel a que foram conferidas, de acordo com sua época, lugar, além de onde se situam nas estruturas sociais. Por isso, haverá sempre mulheres, que se sentirão tão realizadas e identificadas diante do "manual da boa mãe" que recebem, que será muito fácil acreditar tratar-se de algo para o qual nasceram para ser. O problema é quando também aceitamos que ser ser diferente não é normal. Podemos apontar duas consequências disso:
- Os que não se encaixam nos padrões predominantes deverão sofrer de depressão, pois internamente devem se cobrar por não correponder as cobranças da "natureza", uma esperada auto-punição, afinal o amor materno é natural e se no caso que tratamos a mulher não se encaixar no que acreditamos ser "amor de mãe" ela é uma...
- Seguindo a lógica maniqueísta, em que se sou bom e você ruim devo destruí-lo, ou seja, se ser bom é ser como eu e você é diferente de mim, logo... toda mulher que não deseja ser mãe ou não se sente plenamente realizada com o trio gestação, parto, amamentação deve ser jogada na fogueira, nem que seja dos comentários maldosos das amigas e parentes decepcionados com a DESNATURADA.
Os filhos, logo também a incluem na lista por não satisfazer seus critérios de mãe. Há os que acham que ela deveria comprar um carro e pagar todas as suas dívidas, outros que ela deveria saber tudo sobre moda, e os mais clássicos que a desejam ver como uma boa cozinheira-lavadeira-passadeira que deve receber todas as suas reclamações diante do bife que queimou, como uma operadora do setor de atendimento. Estarei agendando uma visita técnica para averiguar sua reclamação, Senhor.

Voltando para Badinter, além da quebra de um paradigma, ou uma ideia que temos como única e verdadeira já que sempre aprendemos assim, podemos tirar dos estudos da filósofa francesa que o “amor de mãe”, senão é inato, é ainda mais belo. Pois demonstra a disposição de amar alguém a quem em geral não se conhece. Ser mãe envolve não só proteger, alimentar, cuidar do outro, mas também, inseri-lo na cultura e ensinar-lhe a ser humano, a pensar, a sentir e a amar, mas não por imposição da natureza e sim por amor.

O papel de mãe, contudo, não cabe necessariamente a apenas uma pessoa e nem sempre foi cobrado da mãe biológica. Levar a frente o mito do amor materno como algo natural é sustentar uma série de medos, frustrações e até preconceitos.
Há mães que são mães de seus filhos, mulheres que são mães de seus maridos, de seu pai, de sua mãe, de seus avós, dos amigos, dos patrõezinhos, dos filhos da vizinha, de quaisquer crianças, com todas as variações que isso pode representar. E embora mais raros, há também homens que amam com amor de mãe, afinal, essa é uma forma de amar.
Assim, concluo que devemos dar o mérito a todos aqueles que traduzem em suas vidas e sentimentos a dor e a delícia de "ser mãe".
Outras fontes sobre o mito do amor materno e o papel da mãe:
E-BOOK - Um amor conquistado: O mito do amor materno
Ainda a maternidade, segundo a Badinter
O MITO DO AMOR MATERNO
Deuses gregos comemoravam a maternidade
O ÉDIPO BRASILEIRO: A DUPLA NEGAÇÃO DE GÊNERO E RAÇA
Josephine Baker e sua Tribo do Arco Íris
Agradecimentos especiais à Professora de Antropologia Valderez Guimarães.
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